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Marcos Mendes alerta: atenção ao parafiscal
Um olho no arcabouço fiscal e outro nas políticas parafiscais
por Marcos Mendes, doutor em economia, especialista em políticas públicas e pesquisador associado do Insper
Há grande expectativa em relação ao que será anunciado como proposta do Ministério da Fazenda como nova regra fiscal. Acredita-se que uma regra crível, que sinalize a estabilização da dívida pública no médio prazo, garanta maior tranquilidade à gestão macroeconômica. Contudo, o governo está disposto a implementar políticas parafiscais que podem anular o efeito estabilizador de uma regra fiscal crível.
Políticas parafiscais são aquelas que lançam mão de entidades controladas pelo governo, que não constam do orçamento fiscal, para fazer políticas públicas. As mais usadas são as empresas estatais, os bancos públicos e os fundos de pensão dos empregados destas instituições.
Os efeitos macroeconômicos das políticas parafiscais são semelhantes aos da expansão fiscal via orçamento: aumento da demanda agregada e elevação da dívida pública (visto que, cedo ou tarde, as instituições acabam repassando seus custos para o Tesouro).
Elevam a incerteza, devido à menor transparência da aplicação dos recursos em relação às políticas claramente registradas no orçamento. Também podem legar problemas microeconômicos, como a baixa qualidade dos investimentos realizados e seu impacto negativo na produtividade.
Em termos de valores, o novo marco fiscal, se bem-sucedido, implicará, no médio prazo, uma reversão de um déficit fiscal em torno de 1,5% do PIB em 2023 para um superávit de 1,5% do PIB: uma redução permanente no nível do déficit primário de 3% do PIB.
Esse ganho tem baixa probabilidade de acontecer, dada a inapetência do atual governo para fazer ajuste fiscal. O argumento central deste artigo é que, mesmo que aconteça este ajuste do déficit orçamentário por meio da regra fiscal, os valores envolvidos nas políticas parafiscais são suficientemente grandes para, por fora do orçamento, reverter o ajuste.
Comecemos pelas intenções anunciadas pelo BNDES que, conforme entrevistas concedidas pelo seu presidente e diretores, podem ser assim resumidas: (i) o volume de desembolsos subiria para 2% do PIB; (ii) o BNDES passaria a emitir títulos próprios para captar recursos; (iii) a TLP passaria a ser fixada em valores diferentes para diferentes setores da economia, conforme decisão do Ministério da Fazenda, referendada pelo Congresso.
Dados oficiais do BNDES mostram que o seu desembolso em 2022 foi equivalente a 1% do PIB. Dobrá-lo para 2% do PIB significa uma injeção de recursos na economia equivalente a 1/3 do ajuste que seria promovido por um suposto bem-sucedido marco fiscal.
Se o BNDES passar a emitir seus próprios títulos, deixando de ficar dependente das transferências de recursos orçamentários, o problema será maior. Ele praticamente se tornaria um Tesouro Nacional paralelo: emitiria o quanto quisesse, emprestaria para quem quisesse, sem dar satisfação às autoridades fiscais ou prestar contas ao Congresso. Ficaria limitado apenas pelos limites do acordo de Basileia, que não seriam suficientes para conter uma forte expansão. Poderia ir além dos anunciados 2% do PIB de desembolsos.
Importante lembrar que quando conseguiu recursos quase ilimitados, mediante empréstimos do Tesouro, o BNDES elevou seus desembolsos para 4,3% do PIB em 2010. Além disso, o título do BNDES concorreria diretamente com os do Tesouro, aumentando o custo de financiamento da dívida pública.
Marcos Mendes, pesquisador do Insper
Já a fixação de diferentes subsídios à TLP, dando ao Congresso poder de definir quem receberia quanto de subsídios, abriria um balcão de pressões políticas que dificilmente teria justificativa em termos de eficiência econômica. Vale lembrar, ainda, que a TLP é a taxa que remunera o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). Reduzi-la seria impor custo aos recursos que financiam o pagamento do Seguro Desemprego e do Abono Salarial. A descapitalização do FAT seria mais um custo fiscal a ser computado.
Todos esses custos seriam assumidos para se obter o benefício do impulso dado ao crescimento pelos créditos e subsídios do BNDES. Exatamente a política que foi tentada entre 2008 e 2015 e fracassou. Em minha coluna na Folha de S. Paulo de 25/3/23 fiz um resumo da literatura que constatou esse fracasso. Vale a pena ler, também, a coluna de Carlos Kawall para o Broadcast em 13/12/22 e o artigo de Maria Silvia Bastos Marques no Valor de 21/3/23.
O segundo canal parafiscal é a Petrobras, cujas intenções anunciadas até agora são: (i) reduzir os dividendos pagos aos acionistas e reter recursos para financiar investimentos, (ii) instituir um fundo de estabilização de preços de combustíveis e (iii) revogar camadas de controle existentes na atual governança da empresa.
Nos últimos 2 anos o Tesouro recebeu, em média, R$ 40 bilhões em dividendos da Petrobras. Supondo que o novo governo reduza em 70% o pagamento de dividendos, a perda de receita para o Tesouro seria de, pelo menos, R$ 28 bilhões por ano (0,27% do PIB). Se o preço do petróleo continuar em alta e a produção do pré-sal continuar se expandindo, a perda será ainda maior.
Além da perda fiscal, há o risco não desprezível de que esses recursos sejam destinados a investimentos da Petrobras de retorno negativo, destruindo capital da empresa. Outra perda pode vir da redução do ritmo de exploração do pré-sal, atividade mais rentável da empresa, que perderia espaço para projetos escolhidos pelo governo, como a construção de refinarias, por exemplo. Assim como no caso dos financiamentos do BNDES, o último surto de ampliação do escopo de ações da Petrobras combinado a aumento de investimentos resultou em vários esqueletos, sem falar nos problemas de corrupção.
Já o fundo de estabilização de preços teria por objetivo subsidiar os combustíveis em momentos de alta do preço internacional. Nos momentos de baixa do preço internacional, o preço na bomba não diminuiria, com o excedente de receita sendo direcionado ao fundo, para recapitalizá-lo. Portanto, em tese, haveria inicialmente um aporte do Tesouro e depois uma gestão à parte do orçamento, sem necessidade de novos aportes.
Porém, esse tipo de fundo tende a ser cronicamente deficitário por dois motivos. Primeiro, porque os incentivos políticos se sobrepõem à regra escrita do fundo: quando os preços internacionais sobem, segue-se a regra de usar os recursos do fundo para subsidiar o preço na bomba. Mas quando o preço internacional cai, não se resiste à tentação política de deixar os preços na bomba cair, o que impede a recapitalização do fundo.
Segundo, porque os ciclos de alta e baixa do petróleo podem não se inverter rapidamente. Um período de alta pode durar vários anos, rapidamente consumindo o capital do fundo. O custo tende a ser alto, como demonstra a experiência internacional, e a tentação de colocar recursos da própria Petrobras no fundo também é grande.
O terceiro pilar da nova administração da Petrobras – a redução dos controles de governança interna – potencializa a entrada da empresa em projetos destruidores de capital. Dar liberdade de ação política para uma empresa que tem US$ 38 bilhões/ano de receita líquida operacional (dado de 2021) abre grande espaço para iniciativas parafiscais.
O risco parafiscal também é ilustrado pela reaparição de um projeto bilionário que, há mais de uma década, já está claro que não para de pé: o famoso trem bala. Assim como quando foi proposto pela primeira vez, nos idos de 2008, fala-se que não será necessário dinheiro público e que o investimento é rentável para o setor privado. Naquela ocasião, pouco a pouco foram sendo inseridos fundos públicos na equação de financiamento. Agora, a empresa que se propõe a tocar o projeto já fala abertamente em contar com recursos de fundos de pensão das estatais. Vale lembrar que, em 2010, a imprensa noticiava que o Palácio do Planalto havia determinado que aqueles fundos de pensão entrassem no financiamento do projeto.
Mais uma vez, estamos falando de valores significativos: R$ 50 bilhões segundo a empresa interessada no investimento. O viés de otimismo de grandes projetos de engenharia é um fenômeno conhecido na literatura internacional, de modo que o custo pode ser bem maior. Na tentativa anterior, o projeto começou sendo cotado a US$ 9 bilhões, e chegou a US$ 19 bilhões, ainda com claros sinais de subestimação.
Mesmo que se abandone novamente o trem bala, não faltarão projetos sem comprovada sustentabilidade financeira candidatos a financiamento pelos fundos de pensão. Nomeações políticas para a direção dos fundos são sinais preocupantes.
Em suma, as políticas parafiscais podem fazer significativo estrago, por serem financiadas fora do orçamento, não sujeitas a regras fiscais, e terem como instrumento instituições que lidam com alto volume de recursos (bancos públicos, Petrobras e fundos de pensão das estatais).
Aprovar uma regra fiscal crível e suficientemente forte já é tarefa difícil. E, infelizmente, não será suficiente se o parafiscal for acionado na direção contrária.