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A diferença entre problema e solução
Entendendo os desdobramentos da crise no universo cripto
“Criptoativos são uma solução em busca de um problema”
— Stanley Druckenmiller
Os capítulos mais quentes da novela da FTX já passaram, mas ela ainda está longe do fim.
Perguntas cruciais, como “os responsáveis serão presos?”; “os lesados serão compensados?“; “é o fim dos criptoativos?” permanecem sem resposta, enquanto autoridades americanas e bahamenhas trabalham.
Outra questão que muita gente está tentando explicar é como Alameda e FTX — o fundo e a corretora de Sam Bankman-Fried que eram umbilicalmente ligados — conseguiram destruir bilhões de dólares de seus clientes.
A resposta começa a aparecer conforme o interventor da exchange, John J. Ray III, o mesmo da Enron, aliás, toma parte da situação.
Ray disse às autoridades americanas haver indícios de que a Alameda operava com privilégios de liquidação dentro da FTX. Esses privilégios ainda não estão bem explicados, mas, ao que parece, a Alameda não tinha stop loss e não era executada de acordo com as regras que valiam para todos.
E o resultado foi um rombo coberto com dinheiro dos outros. Nada como ser amigo do dono da corretora.
É irônico e tragicômico que tudo isso tenha acontecido justamente no ecossistema cripto, que já criou a solução perfeita para que esse tipo tragédia não aconteça, os protocolos financeiros descentralizados, DeFi (de decentralized finance).
Ainda que esteja muito aquém do mercado tradicional em uso e capitalização, DeFi é talvez a parte do criptoverso mais desenvolvida e útil. Por isso vale a pena explicar aqui como esses protocolos funcionam. Se cripto realmente é o futuro, como tanto escutamos, o que deve chegar mais rápido são eles.
Como DeFi funciona
Um protocolo DeFi reúne poupadores e tomadores de recursos em uma plataforma. De um lado, poupadores depositam seus criptoativos (geralmente ETH ou outro que tenha como mecanismo de consenso o proof of stake, mas não entraremos nesse detalhe) em troca de uma taxa pré-fixada de retorno. Tudo isso regido por contratos inteligentes na blockchain.
Esse poupador faz isso pelo mesmo motivo que um investidor em ações aluga seu papel: ele tem interesse em mantê-lo para o longo prazo e pode aumentar sua rentabilidade emprestando o ativo para outro pelo tempo que desejar.
Até este ponto, tudo é muito semelhante às finanças tradicionais, mas na outra ponta, as coisas ficam diferentes. O tomador do empréstimo, na maioria dos casos, precisa deixar criptoativos em garantia, e em uma proporção maior que o que tomou, para sacar stablecoins (criptoativos cujo preço é pareado ao de uma moeda fiduciária, como o dólar).
Vamos explicar com um exemplo que fica tudo mais fácil.
Digamos que você está em um protocolo DeFi que permite tomar emprestado 50% do valor em garantia e tem como gatilho uma proporção de 55%. Com 10 ETH em carteira (mais ou menos US$ 11 mil na cotação desta quarta-feira à noite), você deposita estes ETH e saca o equivalente a 5.500 dólares em stablecoins, ou 5.500 USDC.
É um empréstimo sobrecolateralizado na razão de 1 para 2.
Agora digamos que a proporção da sua operação mude. Se o preço do ETH cair de US$ 1.100 para US$ 900, os 5.500 USDC não serão mais 50% do valor em garantia, mas sim 61%. E como o gatilho era de 55%, sua garantia é executada (um terceiro paga parte dos USDCs que você ainda deve e leva uma fatia do que você havia deixado em garantia, via de regra).
Esse mecanismo do sobrecolateral acontece devido à alta volatilidade e velocidade dos preços dos criptoativos.
Como quase tudo em cripto, à primeira vista isso parece inútil e sem sentido. Mas também como quase tudo em cripto, faz sentido se você passar da página dois.
Um instrumento desses não serve para quem quer comprar um imóvel usando seu FGTS, nem trocar de carro, mas é extremamente útil para alguém que acredite muito na alta de um ativo e queira se alavancar. Se você acreditasse que ETH subiria muito, poderia pegar os 5.500 USDC do exemplo acima, comprar mais ETH, esperar que ele se valorizasse, vender uma parte e devolver as stablecoins com lucro.
Aí temos o problema que Stanley Druckenmiller buscava e uma solução para o problema que a FTX viveu. Se os traders da Alameda estivessem operando esse tipo de protocolo sem acesso ao dinheiro dos pobres clientes, teriam sido liquidados e ponto final.
A novela FTX ainda não tem fim, mas já tem uma moral da história que não é das mais intuitivas.
Enquanto os mais apressados correm para decretar que criptoativos são tóxicos e responsáveis por destruir US$ 10 bilhões dos investidores, basta passar da página dois da história para entender que o problema aqui é uma empresa problemática, operada com base na imperícia, imprudência, incompetência e arrogância, não a tecnologia que ela negocia — que ironicamente contém a solução para os problemas da companhia e poderia tê-la salvado do horror.
Quando a OGX quebrou, não se descartou o petróleo, mas a empresa e seus dirigentes. O mesmo vale para a FTX.
P.S.: Em um dos episódios do Criptoverso, conversei com o David Lawant, um dos maiores especialistas em cripto do Brasil, sobre DeFi. Ele acredita que esse é um mercado que pode chegar aos US$ 15 trilhões. Vale a pena assistir.
Market Makers #22: episódio ao vivo
A Copa começou e o primeiro jogo do Brasil será justamente no dia em que costumamos soltar novos episódios. Como não queremos roubar audiência do jogo da seleção (rs), mudamos para hoje (23) a gravação do episódio #22 e você poderá acompanhar AO VIVO nosso papo com Guilherme Motta, gestor do Studio Long Bias, fundo com 67% de rentabilidade em 7 meses, e Yara Cordeiro, economista de LATAM, com foco em Brasil, da Novus Capital.