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As Carteiras dos Fundos de Ações
Uma análise "microscópica" da indústria de fundos long only
Texto originalmente publicado na CompoundLetter, a newsletter do Market Makers. Inscreva-se na newsletter gratuitamente deixando o seu e-mail aqui!
por Alexandre Costa, CNPI, Analista de Fundos da Empiricus
Há quem diga que as primeiras lentes surgiram há mais de dois mil anos, quando o filósofo Sêneca, durante suas leituras em Roma, utilizava globos de cristal para a ampliação das letras.
Estima-se, entretanto, que essa inovação foi popularizada somente no século XIII pelo filósofo e monge inglês Roger Bacon, com a criação dos primeiros óculos mais parecidos com os que conhecemos hoje, porém ainda sem hastes.
Toda essa evolução culminou, anos mais tarde, no surgimento do microscópio, invenção creditada em 1591 a Hans Janssen, um fabricante de óculos holandês, aperfeiçoada ao longo do tempo e que permitiu o avanço de muitas descobertas no campo científico.
Ao ampliar um corpo qualquer sob suas lentes, um cientista pode observar diversas partículas que o constituem e que são a base orgânica de sua existência.
E se fosse possível fazer um experimento parecido com um fundo de ações?
Restringindo a pergunta àqueles que operam somente na ponta comprada (long only), provavelmente veríamos algo parecido com a representação abaixo:
Um aglomerado de papéis da Bolsa (as partículas) que compõe o organismo maior, o fundo de investimento (o corpo).
Porém, outra ciência, a estatística, nos ensina que somente um corpo isolado não pode ser representativo de um grupo consideravelmente maior. É necessária uma amostra significativa para que seja possível tirar conclusões mais fiéis à realidade — o que vale, inclusive, para pesquisas eleitorais.
Como “cientistas financeiros”, decidimos ousar na pergunta anterior. E se expandíssemos o experimento para todos os principais fundos de ações da indústria?
Após o tratamento de uma base de mais de seis mil fundos com a classificação de “ações” pelos critérios da Anbima — excluindo fundos espelho, exclusivos, muito pequenos e/ou recentes (abaixo de três anos) —, chegamos ao seleto grupo de 127 estratégias de ações long only das principais casas brasileiras, como Atmos, Dynamo, Absoluto Partners, Bogari, Brasil Capital.
Aos mais curiosos, basta clicar aqui para acessar a base completa utilizada no estudo.
Feito isso, consolidamos as principais posições dos fundos em uma única “carteira da indústria de ações”. Para tal, abrimos a carteira de cada uma das estratégias para avaliarmos as ações no portfólio, somando então cada um dos papéis iguais.
Toda ação de Vale (VALE3) e de Itaú (ITUB4), por exemplo, teve seu valor financeiro somado aos seus similares, chegando ao portfólio final composto pelos ativos de cada um dos fundos de investimento em ações presentes no estudo.
Os resultados referentes ao consolidado das posições dos fundos no mês de julho — mês mais recente de divulgação dos portfólios dos fundos — você confere a seguir, apresentando a “foto” da indústria de ações nesse mês em relação ao índice.
A soma do valor financeiro aplicado em ações, considerando ativos brasileiros e BDRs (este último com representação mínima, abaixo de 0,5%), atingiu um total de R$ 75 bilhões — o que seria o “patrimônio líquido teórico” da carteira da indústria — em 316 ações diferentes.
Os resultados da análise surpreendem. São apresentadas a seguir as 20 maiores posições dessa carteira da indústria de ações e seus respectivos setores (definidos de acordo com a classificação setorial da B3) em comparação ao portfólio teórico do Ibovespa:
Novamente, aos que gostam de se aprofundar nos detalhes, deixamos aqui o portfólio completo dessa carteira, referente ao fechamento de julho.
Os percentuais acima (e nos gráficos a seguir) consideram somente a alocação em ações (locais). Ou seja, as posições em caixa, de 7,4% no mês de julho, e em ativos estrangeiros (via posições lá fora diretamente), de 10,5%, são desconsideradas.
Já neste primeiro momento, alguns pontos se destacam. A exposição a empresas como Vale, Petrobras e Itaú fica entre as primeiras em ambos os portfólios, porém com posição bem mais relevante no índice. A soma das três posições no Ibovespa, por exemplo, é de 32,5%, enquanto na carteira da indústria é de somente 12,7%.
O índice ainda apresenta exposição às ações preferencias (PN) e ordinárias (ON) da Petrobras, enquanto a carteira da indústria parece favorecer a primeira classe.
Além disso, o índice possui uma concentração ligeiramente maior nas 20 maiores posições, especialmente pela posição em Vale.
Outra questão interessante aparece na avaliação setorial. Somente nessas 20 maiores posições, o setor financeiro aparece em seis delas no Ibovespa (soma de 20,6%), enquanto na carteira da indústria só aparecem três representantes (7,6%).
Aproveitamos ainda para entender no detalhe as diferenças entre os setores de ambas as carteiras:
O segmento “outros” representa os setores não definidos pela classificação da B3 e os BDRs, com baixa relevância representativa na amostra.
Aqui fica ainda mais evidente a diferença entre a carteira que busca representar a indústria de ações e o Ibovespa. No lado esquerdo, as maiores diferenças ficam justamente para os setores de consumo cíclico e utilidade pública.
Já para o Ibovespa, os setores financeiro, de materiais básicos e de petróleo, gás & biocombustíveis — ou seja, os dois últimos bastante relacionados a commodities —, são mais representativos. Os demais setores, ainda que marginalmente, também apresentam diferenças importantes.
Nesse ponto, o active share da Carteira FIAs, ou seja, o percentual de exposição da carteira que é diferente do Ibovespa — o que poderia representar uma “gestão ativa” por parte da indústria, por isso o nome —, é de 45,8%, considerando somente as posições em ações locais.
Isso vai de encontro com a crítica de que “diversificar muito entre fundos de ações vai te fazer ficar parecido com o Ibovespa”. Como demonstrado, isso claramente não acontece, dado que quase metade das posições desse portfólio da indústria é diferente da exposição do índice, no fechamento de julho.
Utilizando o mesmo grupo anterior, migramos para uma visão mais ampla, projetando o estudo para o final de 2019, em que observamos o “filme” da evolução das cinco principais posições da carteira da indústria trimestralmente:
Aqui, o Ibovespa não aparece no gráfico pois sua exposição permanece praticamente inalterada durante todo período, com as ações Vale, Petrobras, Itaú, Bradesco e B3 sempre como as cinco principais no índice, com variações marginais nos pesos e posições.
No gráfico, repare que Vale e Petrobras também permanecem praticamente nas duas principais posições da carteira da indústria de ações com alterações maiores nos outros três nomes, que variam entre empresas do ramo de petróleo, consumo cíclico (e não cíclico), saúde e financeiro.
É notável também o retorno da ação de Itaú para o top 5, que aparece somente no final de 2019 em carteiras passadas, além de Eneva, que ganhou relevância a partir do segundo trimestre deste ano. Vale, por outro lado, ficou em sexto lugar na carteira da indústria de julho.
O active share médio foi de 44,9%, o que representa a consistência e relevância dessa gestão ativa mesmo em prazos mais longos. Além disso, no período, a média de alocação em caixa dessa carteira ficou em 5,9%, enquanto a exposição em ativos estrangeiros diretamente ficou em 9,5%.
O acompanhamento das carteiras dos fundos é importante, pois pode ser fator decisivo para para os próprios investidores de fundos de ações durante a montagem de portfólio. Afinal, o alto índice de gestão ativa (active share) e a consistência de retornos acima do benchmark são pontos importantíssimos na escolha de uma estratégia de sucesso.