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Brasil, o país do passado (por Daniel Leichsenring)

Várias iniciativas passaram a ser implementadas para fugir das regras fiscais, num processo de enfraquecimento institucional que remontam ao desastre do governo Dilma

Por Market Makers

10 Jan 2025 12h41 - atualizado em 10 Jan 2025 01h39

Cedemos este espaço para Daniel Leichsenring, economista com graduação e mestrado pela FEA-USP. Iniciou sua carreira no Banco Central do Brasil e depois foi economista da Hedging-Griffo, economista-chefe da CSHG AM e Verde Asset Management.

Mais uma vez a sociedade brasileira assiste atônita a uma destruição de valor dramática e a uma piora das condições para a economia. Em pouco menos de 1 ano, a taxa de juros esperada pelo Focus para o fim de 2025 saiu de 8,5% para 14%, e o mercado chegou a precificar no dia 19/dez uma taxa de 17,5% no final do ciclo de alta do Copom. Trata-se de uma das maiores perdas de valor da sociedade desde o Plano Real. Enquanto isso, só se fala do “ataque especulativo” ao Real, como se forças malignas tivessem em conluio tentando desestabilizar a economia.

A taxa de juros da dívida pública baliza toda a taxa de juros da economia, para as empresas, para pessoas físicas que querem tomar empréstimo para comprar bens ou imóveis. A taxa de juros futura também baliza o valor dos ativos, de empresas, imóveis e títulos de renda fixa, que de fixo só tem o nome.

Em um exercício simplista, assumindo que a taxa juros de longo prazo esperada pelo mercado tenha se alterado permanentemente de 8,5% para 14%, qualquer fluxo de caixa descontado apontaria para uma perda de valor de uma empresa ou imóvel da ordem de 40%.

O que terá acontecido? Como tudo em economia, não há um fator isoladamente que explique algum evento. Vivemos num mundo probabilístico, em que os agentes tomam decisões de alocação da sua poupança com base em probabilidades atribuídas a cenários e as probabilidades vão se ajustando ao longo do tempo. São milhões de pessoas interpretando dados, discursos, ações, projetos de lei e tomando decisões sobre onde alocar sua poupança.

Na raiz do problema, está uma questão fiscal muito mal resolvida, que assola o país há décadas, em que decisões populistas pioram a dinâmica da dívida para o futuro, cujos custos recaem sobre as gerações futuras (de eleitores e eleitos). A questão fiscal impacta a vida das pessoas de diversas maneiras.

Quando os gastos públicos sobem de maneira expressiva, a demanda agregada fica muito aquecida, o que tende a elevar a inflação. Essa é uma dinâmica mais “mundana”: mais demanda, mais inflação. Como o Banco Central tem autonomia e uma meta de inflação (estabelecida pelo governo), acaba por ter de subir a taxa de juros para conter a expansão fiscal e voltar a inflação para a meta. Aumentos de gastos permanentes provocam aumento de juros permanentes, cresce o governo, diminui a iniciativa privada.

Outra maneira pela qual o fiscal afeta o equilíbrio macro é por meio da elevação de dívida e da percepção de risco de solvência. Quando o governo tem déficits muito altos, precisa emitir dívida em volumes muito expressivos para se financiar. Nos últimos 12 meses, o Tesouro teve que emitir a bagatela de R$1,1 trilhão em dívida nova, sem contar a dívida que venceu e precisou ser rolada. Para conseguir levantar esse dinheiro, naturalmente fica muito mais suscetível à piora de sentimento, porque vai precisar convencer de quem está tomando empréstimo que terá condições de pagar no futuro, sem nenhum tipo de desconto explícito (calote) ou implícito (inflação).

Eis que desde o início de 2023 tivemos uma mudança dramática no fiscal, e a dívida passou a crescer de maneira expressiva, apesar da surpresa relevante de crescimento. Em 2022, observou-se um superávit primário de 1,2% do PIB. A PEC da transição impôs um aumento de gastos permanentes monumental, e o superávit se transformou em um déficit de 2,3% em 2023, uma piora de 3,5% do PIB em um ano, basicamente com gastos públicos permanentemente mais altos. Não apenas, a extinção do Teto de Gastos fez voltar uma série de indexações, como os de saúde e educação, e a nova diretriz de aumentos expressivos de salário-mínimo impõe um forte crescimento futuro do gasto, num contexto em que a carga tributária já é muito elevada e há enorme resistência do Congresso em aumentar ainda mais.

Ademais, várias iniciativas passaram a ser implementadas para fugir das regras fiscais, num processo de enfraquecimento institucional que remontam ao desastre do governo Dilma. Diante de resultados insuficientes de diversos minipacotes recentes, prometeu-se mais um, relevante, a ser entregue depois das eleições municipais. E, para surpresa de todos, o maior foco do pacote de corte de gastos foi na verdade um corte de impostos.

Neste mandato, inverteu-se totalmente a lógica do ciclo eleitoral. Desde FHC, todos os presidentes tiveram crescimento de gasto e resultado primário melhores nos 2 primeiros anos do mandato, piorando conforme a eleição se aproximava (exceção ao governo Bolsonaro que teve um primário de guerra com a Covid, e qualquer coisa na 2ª metade do mandato seria melhor do que a 1ª). Sempre foi essa a lógica: faz-se um ajuste no começo enquanto a popularidade está alta, e depois coloca o pé no acelerador para a eleição. No Lula III, o 1º ano começou com um aumento de gasto permanente da ordem de 3.5% do PIB.

Onde tudo se conecta: déficit estrutural de mais de 1% do PIB, dívida que cresce 5p.p ao ano, ciclo eleitoral adiante que promete ser disputado, com incerteza sobre o estado de saúde do presidente, discursos negacionistas na economia e nenhum apoio de fato à agenda de controle do déficit são ingredientes de uma receita indigesta, provocando enorme incerteza sobre a viabilidade fiscal do país.

Há o risco de que à beira do precipício, o governo acredite que pode voar para vencer as eleições. Nesse quadro, os agentes ajustam sua matriz de probabilidades, aumentando a chance de que resultados bem mais desfavoráveis venham a ocorrer no futuro antes que um novo arranjo político possa reverter a dinâmica, tal como fez magistralmente o governo Temer.

Probabilidades mais altas de desarranjo levam a realocação de poupança, fuga do Real e de ativos brasileiros. Na base da desvalorização cambial (e de todos os ativos brasileiros, na verdade) está a evolução da dívida pública sem perspectiva de estabilização. A dívida nada mais é do que um imposto sobre o futuro, e estamos sempre dispostos a sacrificar o futuro por um presente glorioso. Quando as probabilidades de eventos extremos aumentam, por menores que sejam, provocam alteração relevante no valor da moeda. A moeda perde valor. Podemos focar nos preços subindo, do dólar, a picanha, o aluguel, mas em realidade, é o valor da moeda que afunda. E não há perspectiva de melhora a não ser que de fato se encontre algum compromisso crível de equacionamento do déficit.

Temos um encontro marcado com um ajuste, que será mais ou menos doloroso a depender do tamanho da (ir)responsabilidade com as contas públicas

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