
Olá, tudo bem?
Aproveitei o feriado para ceder este espaço ao excelente texto escrito por Daniel Ades, que inclusive deu origem ao episódio que fizemos na última terça-feira (15/abr) no Market Makers – você pode assistir o episódio aqui.
Brasileiro de nascença, Daniel trabalha nos EUA desde o início do século e em 2007 fundou a Kawa Capital em Miami, onde ele reside atualmente. Ele escreveu semanas atrás o relatório “The End of An Era”, contando sua visão (pessimista) sobre as medidas anunciadas por Donald Trump.
Daniel permitiu a tradução e distribuição do texto aqui nesta newsletter. Vale a pena a leitura.
O FIM DE UMA ERA
Raramente o mundo presencia uma mudança tão profunda na ordem econômica global.
O anúncio de tarifas recíprocas pelos Estados Unidos marca o ponto final de um arranjo político e econômico insustentável do pós-Guerra Fria — um arranjo que moldou o comércio global por uma geração inteira. Esse sistema foi construído sobre a dominância dos Estados Unidos como vencedor e garantidor da Pax Americana, o autoproclamado “líder do mundo livre”.
As instituições criadas no pós-Segunda Guerra Mundial foram lentamente cooptadas e, em muitos casos, viraram-se contra a própria força que as construiu e sustentou. Isso gerou um sistema estruturalmente desequilibrado, cujo colapso agora parece inevitável. O que estamos testemunhando em tempo real não é apenas uma mudança — é uma explosão sistêmica, com consequências que podem superar até mesmo as previsões mais dramáticas.
Isso vai muito além das relações comerciais. Trata-se do colapso da estrutura geopolítica que definiu a segunda metade do século XX.
Pegue as Nações Unidas, por exemplo. Originalmente concebida como uma plataforma para que as nações resolvessem disputas sem recorrer à guerra, ela recebeu a missão de enfrentar desafios globais como pobreza, doenças, educação e direitos humanos. No entanto, na prática, comitês como o Conselho de Direitos Humanos da ONU tornaram-se quase uma farsa. Em 2025, seus líderes incluem Bangladesh e a República Democrática do Congo — países cujos históricos de direitos humanos são, no mínimo, questionáveis.
De forma semelhante, o Conselho de Segurança da ONU, criado para evitar conflitos de grande escala, mostrou-se totalmente ineficaz. Basta entender que seus membros permanentes têm poder de veto — sendo três deles Rússia, China e Estados Unidos — para compreender a impotência desse órgão diante dos conflitos atuais. No tema do clima, as várias conferências da ONU frequentemente geraram resultados assimétricos: as nações ocidentais aceleram seus esforços de descarbonização, enquanto países como China e Índia continuam aumentando suas emissões — aproveitando-se, na prática, do sistema. E a lista continua.
Mas não é só a ONU. No front militar, a OTAN foi criada durante a Guerra Fria para oferecer segurança coletiva contra a ameaça soviética. No entanto, após a queda do Muro de Berlim, ela permitiu que muitos países — especialmente na Europa Ocidental — colhessem o “dividendo da paz” ao reduzirem drasticamente seus gastos militares. O efeito acumulado é impressionante: de 1990 a 2024, os Estados Unidos gastaram cerca de US$ 20 trilhões em defesa, enquanto toda a Europa Ocidental gastou aproximadamente US$ 6 trilhões. Corrigindo esse valor a uma taxa de 4,5% — o custo médio da dívida americana no período — a diferença acumulada ultrapassa US$ 23 trilhões, mais da metade da dívida pública dos EUA. Não é exagero dizer que grande parte dessa dívida foi construída para sustentar a atual ordem mundial.
O último pilar da ordem global do pós-guerra foi o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT) e, posteriormente, a Organização Mundial do Comércio (OMC), criada em 1995 para regular o comércio internacional e promover a liberalização. Seu objetivo era reduzir tarifas, subsídios e barreiras não tarifárias. Mas os países rapidamente perceberam que as barreiras não tarifárias — como regulamentações, exigências de licenciamento e subsídios — podiam ser tão eficazes quanto para moldar os resultados do comércio. A Europa Ocidental usou subsídios agrícolas de forma estratégica. A China, após entrar na OMC em 2001, foi além: enquanto se beneficiava da redução de tarifas, impôs transferência forçada de tecnologia, exigências de licenciamento e cotas de importação. Restringiu o acesso a plataformas ocidentais (por exemplo, o Google é proibido) enquanto permitia que o TikTok dominasse o mercado americano — um desequilíbrio gritante na soberania digital.
Por que isso não se rompeu antes? Porque os EUA queriam ser vistos como a hegemonia global indiscutível. Era o custo da liderança. Mas, com um déficit comercial crescente e a China emergindo como um par geopolítico e econômico, o desequilíbrio tornou-se insustentável. Os EUA podiam tolerar bancar boa parte da ONU e serem criticados por sua atuação climática — mas não podiam mais sustentar uma versão de “livre comércio” em que a China se tornava o maior credor da América e uma potência econômica dominante.
Deixe-me ser claro: isso não é uma defesa das políticas do atual governo americano. É uma tentativa de explicar a mudança sistêmica que está em curso na arquitetura econômica global. Como seguidor de Milton Friedman, acredito que o livre comércio — quando genuinamente livre — promove paz e prosperidade. As forças de mercado alocam recursos de forma mais eficiente do que qualquer autoridade central. Mas regulamentações, tarifas, barreiras não comerciais e interferência governamental destroem tanto a liberdade econômica quanto a riqueza coletiva.
Isso, no entanto, é um debate filosófico para outro momento. Para os investidores, o ponto principal é reconhecer que o mundo está mudando — e rapidamente. No campo das tarifas, há precedentes históricos para o que estamos vendo hoje. Em 1930, o Ato Smoot-Hawley aumentou as tarifas dos EUA de uma média de 40,1% para 59,1% — um salto de 19%, assustadoramente parecido com as mudanças recentes. Naquela época, assim como agora, isso provocou uma reação global, sendo amplamente responsabilizado por aprofundar a Grande Depressão. Ironicamente, embora as tarifas tenham conseguido reduzir o comércio em mais de 60% em cinco anos, os EUA passaram de um superávit comercial de US$ 4,7 bilhões em 1929 para um déficit de US$ 1,4 bilhão em 1933. Teve o efeito oposto ao desejado. Arrisco dizer que reduzir o comércio global em 60% reduzirá significativamente o déficit comercial dos EUA — a um custo enorme para a riqueza das nações.
Mas isso é quase irrelevante. Em 1930, o objetivo era amortecer os efeitos do crash de 1929 (o que fracassou miseravelmente). Hoje, o objetivo parece mais radical: desmontar o sistema econômico global construído após a Segunda Guerra Mundial, reconhecendo que os EUA já não possuem mais uma dominância incontestável. Mas o impacto econômico provavelmente será o mesmo. A verdadeira preocupação agora é como uma iminente recessão afetará os déficits fiscais dos EUA — e, de forma mais ampla, a capacidade dos governos ocidentais de administrarem suas dívidas. Assim como nossa estrutura geopolítica se mostrou insustentável, também é insustentável a crença de que governos podem se endividar indefinidamente sem consequências. Grande parte desse endividamento se baseava na estabilidade proporcionada por uma hegemonia global. Sem ele, os alicerces começam a rachar.
As implicações nas carteiras de investimento são profundas. Nesse novo mundo, liquidez e flexibilidade mental são mais valiosas do que nunca. Esqueça os padrões antigos. Relações históricas estão se rompendo. Ao avaliar qualquer investimento, pergunte-se: “Eu me sentiria confortável mantendo isso pelo resto da vida?” O crescimento provavelmente se foi — e com ele, os múltiplos “Preço/Lucro” elevados das últimas décadas. O valor dos seus ativos? Provavelmente vai cair. E se isso não bastasse, a intervenção governamental agora moldará muitos resultados de mercado, tornando mais difícil investir com base apenas nos fundamentos.
Uma última palavra sobre o excepcionalismo americano. Muito do desempenho superior do mercado acionário dos EUA tem sido atribuído à sua liderança em tecnologia. Mas eu argumento que o verdadeiro excepcionalismo americano estava em sua capacidade de atrair capital e atribuir valuations cada vez maiores aos seus ativos, graças ao seu poder hegemônico global. O sistema global liderado pelos EUA e centrado no dólar foi o grande motor. Se essa estrutura agora está se desgastando, o que acontecerá com o valor dos ativos americanos? É uma pergunta com implicações relevantes. Portanto, cuide-se. Pense criticamente. E esperemos que esses continuem sendo apenas problemas econômicos — e não geopolíticos. Após o Smoot-Hawley, o mundo viu a ascensão do fascismo na Europa e o início da Segunda Guerra Mundial. Espero sinceramente que este não seja o começo de algo parecido.