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Se é pra viver mal, que seja do meu jeito

Clóvis de Barros veio à Faria Lima sem WhatsApp. Literalmente.

Thiago Salomão

Por Thiago Salomão

26 May 2025 11h45 - atualizado em 26 May 2025 11h45

Clovis de Barros

“O conceito de felicidade para muitos é de que ela é algo a ser atingido, quando de fato ela não é uma meta, mas sim um caminho. O que pouco sabem é que existem vários outros caminhos que não estão vinculados à cultura de massa e a moral tradicional. Caminhos que libertam e nos tiram do senso comum” (“Contra-cultura”, da banda Pense)

Foi só o professor Clóvis de Barros Filho abrir a boca no estúdio do Market Makers que o silêncio tomou conta da sala. E por mais paradoxal que possa soar o que vou dizer, mas o nosso silêncio fez toda diferença para manter o alto nível da conversa.

Nosso podcast já tem como marca registrada “deixar o convidado falar”, pois acreditamos que as interrupções atrapalham no processo de construção de um raciocínio profundo – algo que, na minha modesta opinião, é a grande vantagem de consumir podcasts.

Mas havia no nosso silêncio a certeza de que receberíamos algo que ficaria marcado pra saber em nossa vida. E ficou.

Afinal, em quantas conversas nós pudemos gargalhar com a história do Umberto Eco e o iogurte com banana – e, ao mesmo tempo, ter uma profunda reflexão sobre o caminho que escolhemos na nossa vida não necessariamente estar ligado ao nosso “daimon” (o nosso eu mais profundo).

Clóvis veio à Faria Lima sem WhatsApp. Literalmente. Eu e o Matheus fomos buscá-lo na casa dele e, para entrar no nosso prédio, precisava receber um QR Code no aplicativo que ele não tem. “Será que o WhatsApp me tornaria uma pessoa melhor?”, disse ele durante o podcast, relembrando a história. Foi a primeira de muitas cutucadas.

Nosso silêncio foi intercalado por duas perguntas profundas e que ocuparam mais de uma hora do raciocínio do professor. A primeira, na abertura do episódio, foi “Dinheiro traz felicidade?”. A segunda foi “por que ler os clássicos gregos nos ajuda a entender as pessoas”.

Sobre a primeira pergunta, Clóvis começou nos alertando sobre os dois critérios mais celebrados socialmente para definir o que é uma “vida boa”: capital econômico (ser rico) e capital simbólico (fama). Boa parte das escolhas de vida hoje se baseia nesses dois pilares. Mas… será que eles realmente entregam o que prometem?

Ele nos convidou a refletir:

  1. Toda pessoa rica e famosa vive bem?
  2. Nenhuma pessoa anônima e com poucos recursos pode viver bem?

A resposta, segundo ele, é evidente. Há muitos ricos e aplaudidos profundamente infelizes — alguns inclusive desistiram de viver. E há muitos “Zé Ninguém” vivendo uma vida plena, rica de sentido, ainda que sem riqueza no bolso.

A grande virada de chave vem quando Clóvis apresenta o conceito socrático do daimon, que é nossa essência mais profunda, o eu mais genuíno (“o eu raíz”, como ele disse). A filosofia, diz ele, começa com a máxima “conhece-te a ti mesmo” e só termina quando conseguimos viver em harmonia com esse daimon

Ele inclusive nos convida a refletir sobre a ideia de “Torna-te quem tu és”, que pode soar estranha no começo – afinal, se já sou algo, como posso me tornar isso? – mas traz em si uma constatação triste para muita gente: nem todos sabem quem realmente são neste mundo, ou o que os preenche.

A partir daí, o dinheiro vira coadjuvante. Pode até ajudar, como quando viabiliza uma viagem ao Louvre ou um curso em Portugal sobre Eça de Queirós. Mas não garante nada. E, principalmente, não substitui o alinhamento entre vida e essência.

Nesse ponto, ele foi provocador ao contar quando as pessoas o questionam sobre não desejar viajar para destinos turísticos adorados por muitos: “O problema não é Cancún. É que meu propósito é educar.” Clóvis não quer se aposentar para fazer o que ama, pois ele já tem o gozo em fazer o que faz.

Aliás, foi ao contar uma viagem à Itália para conhecer Umberto Eco que ele ilustrou como pequenas atitudes podem conter grandes lições. Ao pedir um iogurte com banana na casa do autor de O Nome da Rosa, foi recebido com uma gargalhada genuína. Eco ficou encantado com aquele pedido improvável, que rompeu com todas as convenções do aperitivo social. Aquilo virou tema da palestra de Eco no mesmo dia: a beleza de resistir às convenções, a riqueza da surpresa e da autenticidade.

A aula de Clóvis terminou com uma defesa apaixonada da soberania existencial. Viver de acordo com sua própria essência é arriscado, pode parecer estranho, mas é a única forma honesta de viver. “Se é pra viver mal, que seja do meu jeito”, cravou.

Qual foi a última vez que você foi totalmente autêntico o dia inteiro? O quanto você defende a sua soberania existencial? Você convive bem em desejar o que os outros não querem ou ter uma opinião diferente do majoritário?

Percebe a conexão entre as lições extraídas de um filósofo com uma habilidade fundamental de um investidor de empresas, que é a independência intelectual?

Espero que o podcast e esta newsletter tenham mexido com seu brio. Como bem lembrou o Josué no final do episódio: o resto é preguiça ou covardia.

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Thiago Salomão
Por Thiago Salomão

Fundador do Market Makers, analista de investimentos CNPI-P, MBA em Mercados Financeiros na Fipecafi e na UBS/B3. Antes de fundar o MMakers, foi editor-chefe do InfoMoney, analista de ações na Rico Investimentos, co-fundou o podcast Stock Pickers e foi sócio da XP de 2015 a 2021

thiago.salomao@mmakers.com.br