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Teoria da reflexividade: o mercado é racional?
Como a narrativa influencia (e molda) a realidade nos mercados
Texto originalmente publicado na CompoundLetter, a newsletter do Market Makers. Inscreva-se na newsletter gratuitamente deixando o seu e-mail aqui
por Clara Sodré, analista na Esh Capital
O novo milênio trouxe certas particularidades: o esmaecimento de fronteiras, as mensagens instantâneas conectando pessoas em polos opostos do planeta, a sofisticação dos ativos intangíveis e os fluxos cada vez maiores e mais rápidos de indivíduos, ideias e capital revolucionaram nosso mercado e marcam o atual momento, denominado Era da Informação. Essa era, no entanto, carrega consigo uma lógica dialética: nunca foi tão fácil estar desinformado.
As notificações incessantes na tela do seu celular, empresas derretendo em valor de mercado com as notícias na televisão, a propaganda perfeitamente adaptada para que você sinta urgência e necessidade de consumo. Toda essa estrutura gera bombas de dopamina (o hormônio do vício), o que torna seu cérebro imediatista.
Você nunca pensa no futuro, apenas na satisfação presente, e isso reduz seu foco. Você permeia os olhos nas letras, mas não lê. Identifica palavras, mas não as assimila. Associa as frases, mas não as retém. Você não consegue fazer conexões lógicas e não reflete sobre as informações que esses pixels passam todos os dias, porque as recebe o tempo inteiro.
Quer uma prova?
Você possivelmente nem entendeu o que isso tem a ver com o mercado ainda.
Ouvimos novas palavras relativas a tecnologia a todo momento. Ouvimos sobre inteligência artificial, blockchain, NFTs, metaverso, VR, engenharia genética, mas achamos que nada disso nos afeta e tampouco nos diz respeito. Isso, justamente, porque são dezenas de novas terminologias sendo lançadas diante dos seus olhos ininterruptamente.
Sua cabeça usa alguns “atalhos” para poupar energia, o sistema 1 de Daniel Kahneman. Você pensa de maneira rápida, automática, de maneira a evitar fadiga para tomar uma decisão (o que é perfeitamente normal – ninguém consegue pensar antes de agir o tempo inteiro, porque seria muito custoso).
Isso abre margem para a disseminação de uma miríade de narrativas. A narrativa dispensa o pensamento racional. A narrativa muitas vezes dispensa os números. A narrativa pode ser bem fundamentada, ter um motivo plausível, mas muitas vezes pode não ser. Às vezes é completamente surreal, às vezes faz o mais absoluto sentido. Às vezes ela é só uma conspiração, às vezes é quase um consenso. E ela tem uma força gigantesca nos mercados – os bancos centrais podem dizer melhor que ninguém como a narrativa é poderosa.
O mercado é racional?
O mercado é uma entidade complicada. É composto por vários milhões de agentes, com grande assimetria informacional. Certa vez, um dos nossos oráculos da Fintwit (que já foi entrevistado pela equipe do Market Makers, caso você não tenha visto), Rodrigo Campos, disse: nosso mercado não é feito de Bloomberg e robôs HFT. Nosso mercado é feito de pessoas.
Todo ele. A ação que você compra no seu home broker é um pedaço de uma entidade composta por pessoas, unidas contratualmente visando um objetivo (o lucro, oras). O próprio Senhor Mercado tem suas expectativas moldadas por pessoas e intensificadas por narrativas.
O Senhor Mercado não pode ser racional 100% do tempo. Por uma simples equivalência: pessoas não são racionais 100% do tempo. O ser humano é falho e seu processo decisório está permeado por heurísticas e vieses, que geram expectativas. E não há nenhum lugar onde se pode ver mais claramente o papel das expectativas do que no mercado.
Narrativa e cenários – a teoria da reflexividade
Segundo a teoria da reflexividade de George Soros, se o mercado é composto de pessoas e elas são falhas, então elas são condicionadas pela “compreensão imperfeita”. Em outras palavras, estamos sujeitos a interpretar de maneira equivocada a realidade em que estamos inseridos. Este processo gera uma contrapartida: essa interpretação falsa passa a ser usada como referência para seu processo de tomada de decisão.
Um agente de mercado, portanto, toma uma decisão a partir de duas etapas: a parte passiva, em que interpretamos a realidade a partir de narrativas e vieses cognitivos. E a parte ativa, quando você toma uma decisão que tem impacto na realidade concreta, baseado nessa narrativa que você tomou como verdade. Em outras palavras, você toma decisões inapropriadas, dados os seus objetivos, porque você tem como pressuposto uma interpretação também errada. A narrativa, portanto, se materializa nas expectativas do mercado.
Num primeiro momento, suas expectativas dependem do cenário. No segundo, o cenário é influenciado pelas expectativas dos agentes. Tanto as expectativas quanto a realidade se co-alteram e se retroalimentam. Essa é a reflexividade dos mercados. É ela que faz com que ele não seja sempre eficiente – o que é ótimo, porque possibilita as assimetrias que tanto buscamos. O sistema de preços incorpora vieses, que muitas vezes fazem com que o ponto de equilíbrio (famoso “preço justo”) não seja sempre atingido.
É por isso que em vez de dizer que “o mercado sempre está certo”, Soros passa por duas grandes máximas:
1- Mercado está sempre enviesado – para uma direção ou para a outra
2- Mercado consegue influenciar os eventos que consegue antecipar
A narrativa predominante faz com que o mercado esteja enviesado – e essa narrativa se retroalimenta, em um looping de feedbacks positivos ou negativos, acelerando a tendência. Eventualmente, a expectativa do mercado está tão desajustada à realidade que ele corrige, fechando o spread entre preço e valor justo.
É claro que a narrativa dita “predominante” não é inerente a todos os agentes do mercado – para alguém vender, alguém tem que comprar. Quanto de uma situação de pânico é racionalidade e quanto é exagero, é a pergunta de um milhão de dólares (ou, nesse caso, de US$1,6 trilhão). Uma coisa é certa: se você vendeu, tem alguém comprando. E alguém está errado.
As mais diversas expectativas acerca de pautas políticas – o plano de governo, o fim do teto de gastos, a PEC de transição e o ministro da economia de Schrödinger – já estão materializadas na realidade, seja no DI futuro, no índice, no dólar. Se gerou uma assimetria grande ou “está no preço”, eu deixo a critério do interlocutor.
Uma coisa é certa, caro leitor do Market Makers: O Brasil não acabou – nem vai acabar. É como diz-se por aí na Faria Lima: mercado é como baile funk, tem todo dia. Há quem se desespere e quem enxergue oportunidades. Há quem observe e há quem faça.
Qualquer identificação com o atual cenário é mera coincidência.
Ou mera narrativa.
Obrigada por ler!