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Uma reflexão que todo tomador de risco enfrenta

Um bom tomador de decisão parece demonstrar muita certeza para o mundo externo, mas seus demônios internos não param de gritar – “VAI DAR MERDA!”

Thiago Salomão

Por Thiago Salomão

09 Jan 2025 17h56 - atualizado em 09 Jan 2025 05h57

O texto abaixo é um trecho da última carta da gestora Mar Asset, que eu considero uma das melhores cartas que eu li em 2024.

Neste trecho, o sócio da Mar, Luis Moura, traz uma reflexão que todo tomador de risco enfrenta constantemente, tendo como base princípios do imperador romano Marco Aurélio que são aplicados no mercado financeiro.

Até por isso este trecho na carta recebe o título de “Meditações”, livro de Marco Aurélio.

Por que estou compartilhando isso com vocês: porque esse trecho não coube no resumo que eu fiz sobre a carta da Mar Asset e que já foi visto por mais de 239 mil pessoas no Twitter (o link deste resumo está aqui). E opinião pessoal: esta reflexão está mais interessante do que o restante da carta, até por isso acredito que ela merece ser lida na íntegra, sem resumos.

Então, aproveite a leitura!

O que leva uma pessoa a ser boa em tomar decisões acertadas? Isso é ensinável?

Se você perguntar diretamente para os tomadores de decisão – bons ou ruins –, todos vão mencionar muita leitura, bom senso, resiliência, apetite a risco e intuição, entre outras características.

E se perguntar para o mesmo grupo, dentre aqueles os mais experientes, vai ouvir que ao longo da vida conheceram poucos, muito poucos, consistentes bons tomadores de decisão.

Então o funil é estreito. Você pode alimentar toda a turma dos estudantes do tema com os mesmos skills, mas o que sairá do outro lado será provavelmente um erro estatístico.

Quais os ingredientes que acreditamos serem a base dessa receita?

Em geral, uma combinação entre (i) autoconfiança e teimosia para com o mundo exterior – combinada com insegurança nos debates entre você e você mesmo, (ii) algum grau de conforto em ser solitário, e (iii) uma atitude semi-blasé para as vitórias e as derrotas (vulgo controle emocional). Por cima dessa base, vem as inúmeras possibilidades de ingredientes individuais.

Um bom tomador de risco não pode se deixar levar pelo óbvio, pelas opiniões de terceiros ou pelos temas do momento. Precisa ter algum grau de arrogância para achar que os “outros” estão errados. Enfrenta o consenso, mas se corrói internamente por causa desse conflito.

Esse nível de confiança pode vir de uma característica pessoal inata – que sem o balanceamento da dúvida é a fórmula do desastre –, ou de algum grau de genialidade, o que é extremamente raro e não replicável.

O ponto ideal é uma autoconfiança dosada – combinada com muito conteúdo, criatividade e dúvida.

A essas características adicionaríamos mais uma – a capacidade de delinear os cenários probabilísticos em torno de uma decisão. Afinal, a estatística talvez seja a ciência matemática que mais se aproxima das áreas humanas: não costuma precisar de cálculos e equações complexas, não resulta em absolutismos, alimenta os indecisos e protege os arrogantes. É a religião a ser praticada e refinada, realimentada pelo próprio histórico cognitivo. Talvez seja a ferramenta mais poderosa de tomada de decisão quando combinada com instinto matador e gestão de risco.

É certamente muito poderosa, também, para ajudar em decisões cotidianas. Ir no aniversário da sogra ou no futebol dos amigos (ou no surfe)? A árvore de probabilidades dessa decisão, quando tomada repetidas vezes, certamente não reflete uma distribuição normal, especialmente quando se decide recorrentemente pelo futebol.

Aliás, as distribuições estatísticas desse ser atormentado entre a teimosia e a insegurança nunca respeitam uma curva normal, senão seria fácil. Costuma ser nos eventos de cauda que a mágica realmente acontece. O fácil não existe.

Na cabeça de um bom tomador de decisão o processo está organizado de forma matricial e ponderada. “Gosto disso mais do que aquilo”, “esse risco tem maior ou menor probabilidade de acontecer” ou “essa decisão tem maior chance de dar certo”. Não há espaço para o absoluto. “Tenho certeza”, “eu garanto” e “assino embaixo” não fazem parte desse vocabulário.

Ao mesmo tempo, para se diferenciar é preciso acreditar nessa convicção sempre parcial e, de vez em quando, apostar grande.

A estatística é importante, ainda, na dosagem entre a arrogância e a insegurança. Em uma distribuição 50%/50%, a decisão boa é não fazer. E, para completar, é tudo dinâmico. A última decisão retroalimenta o modelo, muitas vezes com vieses que embaçam a próxima tomada de decisão. Cinco anos seguidos escolhendo o futebol sem grandes consequências deveriam aumentar a probabilidade de essa ser novamente a escolha acertada? O segredo é não deixar a sorte (ou azar), pesar demais na avaliação.

Um bom tomador de decisão parece demonstrar muita certeza para o mundo externo, mas seus demônios internos não param de gritar – “VAI DAR MERDA!”.

“Acredito em mim, mas tenho dúvida”, “acertei, mas pode ter sido sorte”, “incluo ou não a última decisão – e o último resultado – no modelo de inferência estatística?”

Enquanto o processo inicial de análise de uma potencial decisão segue um curso parecido com o da física tradicional (com relações diretas entre as variáveis e que podem ser descritas em equações relativamente simples), o processo da tomada de decisão propriamente dito mais se assemelha à dinâmica da física quântica.

Imagina essa pessoa, que o grosso do tempo está fazendo estudos (e não tomando decisões): seu modelo mental enquanto analista é, provavelmente, tradicional, talvez matricial. Seguindo essa lógica mais linear, o momento da tomada de decisão deveria ser sequencial e simples, mas será que isso é o correto? Ou será que deveria adicionar todas as novas variáveis que surgem entre o término da análise e a decisão? Estado de espírito, intuição, resultados anteriores e interlocutores presentes.

E no momento que você toma a decisão, isso também tem que ser realimentado no modelo, talvez com uma nova variável de viés. Na física quântica, seria o equivalente ao efeito observação. Quando você identificou uma das características da partícula (seja movimento, velocidade, etc), as outras características mudam imediatamente. Antes da tomada de decisão costuma haver um elemento importante na equação – GREED (ambição) – que pode ser observado, quantificado e influi diretamente no outcome esperado, mas que misteriosamente, logo após a decisão tomada, desaparece, reaparecendo em um outro lugar do cérebro e com outro nome – FEAR (medo)! Nem Einstein entenderia.

No antes, a sua percepção das variáveis usadas para a decisão é uma. No depois, ela muda, alimentada pela dúvida, pelo medo, pela excitação.

A curiosidade sobre como dominar esses conflitos internos seria suficiente para os pretendentes a tomadores de decisão gastarem bastante tempo estudando a si mesmos. Quais as suas características pessoais que deveriam ser potencializadas (ou abafadas) para ajudar no processo? Mas antes, vem o diagnóstico de quais são as suas características pessoais.

Um profundo conhecimento de suas forças e fraquezas não se ensina em nenhuma escola. É um exercício pessoal, intenso e cruel, mas que se não for encarado com seriedade se transforma em mais meias verdades que obscurecem o processo de tomada de decisão e o amadurecimento. Há uma frase atribuída a Adam Smith que sintetiza essa reflexão: “If you don’t know who you are, the market is an expensive place to find out”. Um pouco de psicanálise também pode ajudar a processar todos esses conflitos.

Ao fim do processo, o graduado na escola de tomada de decisão precisa sair com o diploma de qual é seu verdadeiro modelo mental. Modelo esse multidimensional e dinâmico.

Para uma ideia de uma mente atormentada por constantes tomadas de decisão e suas implicações, vale a leitura de algumas passagens do livro “Meditações”, escrito pelo imperador de Roma Marco Aurélio por volta do ano 160, fase final da era conhecida como Pax Romana.

Durante seu reinado, Roma voltou a enfrentar uma série de guerras, e Marco Aurélio gostava de fazer anotações endereçando seus conflitos internos, especialmente durante as duras campanhas militares. Mas o mais interessante sobre o livro é a maneira que ele encontrou para se defender internamente dos conflitos gerados por problemas que não estavam sob seu controle. Talvez seja um dos grandes tratados do estoicismo.

As similaridades com decisões no mercado financeiro são inúmeras. O indivíduo que sofre com todas as situações, tanto as geradas por si próprio, como por terceiros, terá vida curta (ou enriquecerá seu psicanalista ao invés de seus investidores!). Então, dentro desse filtro de análise das tomadas de decisão e seus resultados, separar o que é de sua inteira responsabilidade e o que é o “acaso” é fundamental. Por meio do estoicismo, Marco Aurélio conseguia focar apenas nas questões fundamentais que estavam sob seu controle.

Em seu modelo mental, desenvolvido em conversas consigo mesmo, Marco Aurélio definiu um norte onde estavam valores como ética, fazer o bem e humildade. Suas decisões, por mais conflituosas que fossem considerando sua função, eram sempre pautadas por esse Norte. Os filtros foram peça fundamental em seu processo decisório.

Um pequeno exemplo dessas “meditações”, e que conversa com nossa vida (de mercado financeiro), foi colocado por ele da seguinte forma: “Em suas ações, não procrastine. Em suas conversas, não confunda. Em seus 18 / 22 MAR ASSET Outubro 2024 pensamentos, não divague. Em sua alma, não seja passivo ou agressivo. Em sua vida, não seja só sobre negócios.” 

No mercado, nossas decisões se traduzem em uma forma crua de resposta – ganho ou perda, certo ou errado. A cada resultado, não tem distribuição estatística, meio certo ou meio errado. Ou ganhou, ou perdeu, é um sistema binário. E sempre achamos que ganhamos pouco ou perdemos muito. Nunca é suficiente. 

Temos de um lado um tomador de decisão atormentado, que funciona com uma mecânica probabilística bagunçada por seus próprios vieses. Do outro, uma resultante seca, que é sempre binária. Pode-se ter 70% de chances de estar certo, mas se errou, errou em 100%. TAPA NA CARA!

Qual a solução para esse conflito? Uma delas é entender que errar é parte estrutural do processo, mas que buscar uma autoanálise estatística para entender seu hit ratio também é fundamental. Simplificando – acertar mais do que errar, ou, se errar mais, acertar maior (esse para poucos!).  

Roger Federer, por exemplo, teve um hit ratio de “apenas” 54% dos pontos jogados, mas se transformou no maior jogador de tênis de todos os tempos, vencendo 80% das partidas. No poker, analisado extensivamente pela especialista em psicologia cognitiva e exímia jogadora Annie Duke, o hit ratio dos melhores profissionais não chega a 55%. Na indústria financeira o hit ratio é estruturalmente baixo, talvez mais baixo do que em outros setores. 

Essa análise, apesar de aparentemente simples, tem suas complicações. Assim como no poker, não fazer nada (“fold”) às vezes é a melhor decisão. Essa, porém, não entra nas estatísticas, bagunçando o hit ratio e complicando tudo ainda mais! 

O surpreendente é que mesmo entendendo essa dinâmica, de que vamos errar e acertar mais ou menos na mesma quantidade de vezes, a depressão criada pelos prejuízos é devastadora. Será que os fundos quantitativos sem coração e alma não tem uma imensa vantagem nesse quesito? 

Conclusão 

Os pod shops estão há quase uma década operando o mesmo trade alavancado, em seus mais variados formatos. Long growth, short value, long tech stocks, short bank stocks, long large cap tech, short small caps, long moedas de carrego, short yen. Esse longo track record suja os modelos mentais – “deu certo, vai continuar a dar certo”. Estão todos indo para o futebol ano após ano e esquecendo da sogra. 

Como tem dado certo, levanta-se mais dinheiro para as mesmas coisas, retroalimentando a dinâmica. Mas quanto mais capital, mais desafiador gerar excesso de retorno. São cerca de dois trilhões de dólares geridos por esses fundos hoje, e já seria difícil se houvessem tomadores de decisão hábeis o suficiente para o tamanho do desafio, mas talvez quase impossível quando a realidade é de gestores cada vez menos experientes, diplomados por treinamentos questionáveis, incentivos tortos e vieses de mercado potencialmente distorcidos pelas longas tendências. Combinado a isso, estamos vivenciando o maior ciclo de capex em tecnologia da história, capitaneado pelas maiores empresas do mundo em valor de mercado, sem clareza de prazo nem dicas sobre rentabilidade potencial ou vencedores no longo prazo. 

Quantos dos 10 mil novos funcionários nos pod shops sairão do funil como bons tomadores de decisão? Quantos serão moídos? Enquanto isso, qual o percentual dos dois trilhões de dólares está nas mãos de quem está no meio do caminho e vai virar erro estatístico?

Aguardemos as cenas dos próximos capítulos…



Aqui está o link da carta na íntegra. 

Por hoje é isso. Se você tiver cartas de gestoras que julgue interessantes de compartilhar com o grande público, não hesite em nos enviar respondendo algum dos nossos e-mails. É sempre um prazer trocar informações com os leitores da CompoundLetter.

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Thiago Salomão
Por Thiago Salomão

Fundador do Market Makers, analista de investimentos CNPI-P, MBA em Mercados Financeiros na Fipecafi e na UBS/B3. Antes de fundar o MMakers, foi editor-chefe do InfoMoney, analista de ações na Rico Investimentos, co-fundou o podcast Stock Pickers e foi sócio da XP de 2015 a 2021

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